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X-nelo

Essa ficção relâmpago foi publicada no episódio dois da sexta temporada da Faísca, uma newsletter semanal que traz contos curtinhos de fantasia e ficção científica para a sua caixa de e-mails. Não conhece? Assina logo! É de graça! O link é eepurl.com/ghH89v

Você também ouvir essa ficção relâmpago no podcast Assovio, narrado pelo Ariel Ayres.

Acordar de cabeça para baixo amarrado no caibro do estábulo não foi a melhor experiência que já tive. Não foi a pior também. O desgramado deve ter me pegado ontem quando saí do boteco. Confesso que eu estava um pouco tonto e não vi o que me acertou. Sorte a dele, ou teria experimentado minha famosa chinelada. Alguns super-heróis têm um martelo, outros um escudo. Minha arma secreta é o meu chinelo de dedo.

Sempre gostei de quadrinhos de super-heróis. Quando eu era mais novo, todo mês eu e meu melhor amigo juntávamos nossas moedinhas pra comprar uma edição nova na banca de jornal. Quando ganhei meus superpoderes, meu amigo queria me chamar de Super-Chinelo, mas preferi X-nelo. Sempre gostei mais dos X-Men do que do Super-Homem. 

Olhei pro alto, pensando num jeito de escapar. Forcei os punhos, mas a corda era forte, e o nó bem firme. Enquanto eu me sacudia feito uma minhoca puladeira, o miserável apareceu pra me interrogar. Era um rapazote esnobe, fortinho de academia, com a barbicha desenhada. Vestia uma calça jeans apertadinha, uma camisa florida com três botões abertos e um chapéu de palha novinho.

— Patrão quer saber onde conseguiu seus superpoderes — ele falou.

Pensei num desaforo daqueles bem indecentes envolvendo a mãe do dito cujo. Mas não é bom brincar com mãe, e eu sabia bem disso. Minha querida mãezinha não gostava de violência, mas teve uma vez que ela abriu uma exceção. Eu já era bem crescido na época. Era um almoço em família. Perturbei tanto a velha que ela tirou o chinelo do pé e zuniu na minha cabeça. Quando me recuperei do desmaio, descobri que tinha superpoderes.

— Eu mostro procê onde foi se me soltar daqui, filho d’uma égua — falei.

Se o nó não estivesse tão apertado e a corda não fosse tão grossa, já teria me libertado, e aquele infeliz já estaria voando pra mais de cinquenta metros pelo pasto depois de uma única chinelada. 

— Dizem que você é capaz de pôr fogo nas coisas — ele disse, chegando mais perto de mim. — Tão falando que anda incendiando o pasto aqui da região.

Como se eu não tivesse mais o que fazer. Era verdade que eu não controlava aquele poder muito bem, mas eu não seria capaz de causar um estrago ambiental. Passei anos sem entender por que eu havia ganhado a pirocinese — o mesmo poder do homem tocha — depois do incidente com minha mãe. A origem da minha super chinelada era óbvia, mas por que o fogo? Só depois me lembrei da linguiça apimentada que haviam servido no almoço daquele dia fatídico. Era tanta pimenta que algum elemento X da malagueta deve ter escapado do prato e caído no meu olho. Lembro que ardeu igual brasa.

— Diacho, e agora precisa de superpoder pra por fogo em pasto? — respondi com deboche. Afinal, aquela pergunta era um desaforo. Estavam querendo me incriminar.

— Vai saber do que você é capaz depois de algumas cachaças. — Ele deu um sorrisinho. — Você tá sempre no botequim.

E eu lá sou doido de misturar fogo e pinga?! De fato, eu andava bebendo muito ultimamente. Não tinha nenhum supervilão ali na roça pra dar razão pra minha existência. Quem sabe se tivesse um laticínio investindo em experimentos com substâncias radioativas, já teria surgido o Minotauro ou quem sabe o Abutre. Um herói sem um arqui-inimigo é igual cachaça sem torresmo!

— Olha — eu disse, já perdendo a paciência —, fala pro seu patrão procurar outro bode expiatório.

— Ele quer saber quem tá te pagando.

Era só o que me faltava. Meu salário de batedor de pasto mal dava pra pagar a conta da mercearia & bar no fim do mês.

— Rapaz, se eu tivesse ganhando dinheiro assim, você acha que eu rodaria por aí de camiseta furada e chinelo de dedo?

Pronto. Minha paciência havia se esgotado. Estalei os dedos e uma labareda subiu pelas cordas que me amarravam. Caí no chão igual estrume, mas me levantei bem rápido. Mesmo sem ter supervelocidade, eu ainda tinha minha dignidade. O rapazola parecia que havia visto a mulher de branco na estrada de tão assustado. Meio trêmulo, sacou uma pistola, apontou pra mim e, sem pensar duas vezes, puxou o gatilho.

O barulho do tiro fez as galinhas se agitarem do lado de fora. O rapaz ficou ainda mais assustado ao me ver de pé depois de tomar um tiro na barriga a poucos metros de distância. Eu peguei a bala amassada e espanei minha camiseta — agora com um furo novo. Pouca gente conhecia meu terceiro superpoder. Naquele almoço de família, quando levei a chinelada, a sobremesa foi rapadura.

Caminhei lentamente até o rapazola e surrupiei o chapéu dele pra mim. Ele não reagiu. Só então resolvi responder a primeira pergunta.

— Meus poderes vieram de um chinelo velho de um pé cansado, de uma pimenta que não era refresco e de uma rapadura doce, mas que não era mole não.

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Excalibur

Essa ficção relâmpago foi publicada na terceira temporada da Faísca, uma newsletter semanal que traz contos curtinhos de fantasia e ficção científica para a sua caixa de e-mails. Não conhece? Assina logo! É de graça! O link é eepurl.com/ghH89v

A foice decepou o último caule e José preparou o feixe de cana para pôr no próprio lombo. As folhas fibrosas arranharam suas costas, mas ao menos fizeram sombra na cabeça suada sob o sol impiedoso. Caminhava ouvindo o som do mato arrastando na terra até ouvir alguém sussurrar ao seu lado.

— Ei, Zé. Já ouviu falar na cabocla do lago?

Ele encarou o amigo com um olhar de descrença, a pele vertendo suor, mas o homem continuou a falar.

— Tão falando que tem uma moça morando debaixo d’água. Quem passa lá em noite de lua cheia ela chama.

— Aquele açude tá cheio de peixe e sinhô não gosta que ninguém chegue perto — retrucou José. 

— Eu que não vou chegar perto mesmo! Vai que a danada me puxa pra dentro d’água e me afoga.

— Essas histórias de sereia… é tudo lenda, Manoel. 

— Que sereia que nada! Dizem que é uma feiticeira ou um fantasma.

• • •

José terminou o dia dando banho nos cavalos e se lavou depois com a água que sobrou no tanque. Pegou um farnel que havia deixado escondido no caibro do estábulo e se perfumou com óleo. Vestiu uma roupa limpa e saiu pela estrada. Era noite de lua cheia e tinha roda de capoeira em um terreiro ali perto.

Já estava escuro quando passou no açude da fazenda. Lembrou-se do que Manoel havia lhe dito ao reparar no reflexo da lua no espelho da água. Subitamente, algo se moveu e José sentiu um calafrio. O açude enrugou-se como um maracujá e ele ouviu algo emergir. Parou assustado e deu uns dois passos para trás.

— José — ele ouviu uma voz feminina chamando.

Ele quis correr, mas suas pernas estavam paralisadas. A silhueta do torso de uma jovem de cabelos compridos o encarava de dentro da água, com o luar refletido nos olhos. 

— Como essa diaba sabe meu nome? – murmurou sozinho.

Ele espreitava de longe, tentando se convencer que aquilo era só um delírio.

— Não tenha medo – ela continuou. – Há algo que preciso lhe entregar.

Com as pernas trêmulas, José se aproximou, ressabiado. Os olhos brilhantes da moça o atraíam de um jeito inexplicável, que o impedia de fugir correndo. Seu coração batia acelerado e seu corpo se movia involuntariamente. Intrigado e cheio de medo, contornou o tronco grosso de um ipê, ainda florido, na beira do açude e se agachou na margem.

A jovem cabocla riu e mergulhou de repente, deixando as águas calmas mais uma vez. Pareceu nadar até o fundo e José olhou para os lados, sem entender o que estava acontecendo. Só depois de alguns instantes que notou o cabo de um facão, emergindo da água barrenta. Aos poucos, a arma foi erguida por completo, como se flutuasse sobre as águas, amparada pela mão delicada da cabocla do açude. Lâmina comprida, afiada e reluzente. 

Mesmo submersa, a voz da moça foi clara:

— Que esse facão rompa amarras e una o seu povo!

Com os olhos vidrados, José se aproximou, pegou a arma com cuidado e a levantou no alto, sentindo-se cheio de vigor. Em um vislumbre, imaginou-se livre ao lado dos que amava. Então ouviu um tiro.

— Escravo maldito, querendo roubar peixe do sinhô!

Seu peito ardia como brasa e faltou ar em seus pulmões. José caiu no mato e sentiu o sangue escorrendo pelas costas. A cabocla do lago havia desaparecido e os homens chegavam perto, pelo som que suas botas faziam no capim.

— Se ele morrer, sinhô vai reclamar — ouviu uma segunda voz dizer. 

Enfraquecido, José ergueu o corpo e fincou o facão no tronco do ipê. Rogou aos deuses uma prece para que só quem fosse digno pudesse reaver aquela arma. Prestes a perder a consciência, ainda conseguiu escutar:

— Vaso ruim não quebra. Ele ainda vai pagar por ter enfiado essa merda de faca na árvore favorita da sinhá.

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RONA

“I took Punk to be the detonation of some slow-fused projectile buried deep in society’s flank a decade earlier, and I took it to be, somehow, a sign.”

― William Gibson

Por enquanto, esse conto não está disponível para leitura aqui no site, pois ele faz parte de uma antologia cyberpunk, ao lado de outros contos incríveis. Vocês podem baixar o livro completo, gratuitamente, no link aqui embaixo. É só colocar o e-mail e você receberá o PDF na sua caixa de entrada.

https://coverge.com.br/acidneon20/

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O Conserto do Sol

Essa ficção relâmpago foi publicada no episódio 14 da segunda temporada da Faísca, uma newsletter semanal que traz contos curtinhos de fantasia e ficção científica para a sua caixa de e-mails. Não conhece? Assina logo! É de graça! O link é eepurl.com/ghH89v

Com um lenço, o rei enxugou o suor das têmporas e bradou, impaciente:

— O povo não aguenta mais tamanho calor! Temos que consertar esse maldito sol!

O monarca voltava de seu passeio matinal em uma liteira espaçosa, coberta por cetim e equipada com sopradores de ar movidos a nióbio. Desde o ano anterior, o segundo sol de Bozânia havia decidido que não se esconderia mais atrás dos anéis de ametista, o que tornou o verão insuportável. Os dias perderam o colorido violeta e ganharam um matiz esbranquiçado e ardente, fazendo os operários desmaiarem nos andaimes e os feirantes esconderem suas tendas nas sombras.

O vizir, que acompanhava a procissão a pé, olhou com desconfiança para o monarca, vendo-o gesticular enquanto continuava falando:

— Zorique — o rei o chamou —, reúna os feiticeiros mais proeminentes do mundo e ordene que me tragam uma solução para acabar com esse inferno!

Com uma expressão obediente e apática, o vizir assentiu e virou na primeira esquina para providenciar o feito.

Foram dezessete noites até os feiticeiros chegarem ao palácio. O primeiro que entrou no salão de audiências foi Erifre Ópula, com óculos pesados na ponta do nariz e uma barba branca que ia até a barriga. Curvado, mas com olhos brilhantes, vestia uma túnica escarlate e portava um cajado com uma estrela de ouro. Ele contou ao monarca que o destino dos astros era inalterável, e que tudo o que podiam fazer era amenizar o sofrimento do povo, dando-lhes telhas de barro para cobrirem suas casas e menos horas de trabalho por dia. Erifre prometeu um feitiço que adiantaria os relógios do reino, fazendo o dia começar antes do nascer do sol. Assim, os operários trabalhariam no frescor do fim da madrugada e descansariam após o almoço.

Com a tez rubra de indignação, o rei apontou para ele e gritou:

— O senhor comprometerá o orçamento do reino! Quer tornar meus operários vagabundos? Só pode estar interessado em derrubar o meu reinado!

O rei mandou prender o feiticeiro. Os guardas prontamente cercaram o sábio e o levaram embora. O vizir então mandou entrar o segundo feiticeiro, cujo nome era Meruteki Onira. Ele entrou vestindo um chapéu decorado com penas de diferentes pássaros e uma túnica feita de palha e couro. As pinturas em seu rosto — flores e animais coloridos em vermelho, azul e branco — moviam-se conforme ele falava. Profetizou que o sol só voltaria a se esconder nos anéis de ametista quando o reino devolvesse cor ao solo e brilho às águas dos rios. 

O rei encarou Meruteki com o olhar azedo e a boca torta. O feiticeiro ainda prometeu derramar centenas de sementes pelo reino, e também um feitiço que as faria germinar e crescer em poucos dias para trazer sombra às ruas e frutas frescas o ano inteiro. O rei voltou a esboçar um sorriso, considerando a proposta. O feiticeiro esclareceu, entretanto, que havia uma condição para que o feitiço perdurasse: nenhuma árvore do reino poderia ser cerrada, ou todas as demais também morreriam. O rei torceu o nariz e bradou:

— E como terei madeira para erguer meus andaimes ou alimentar minhas forjas? Quer falir meus mercadores e acabar com a economia do reino? Pretende enfraquecer o meu poder para depois tomá-lo!

Novamente, o rei mandou prender o homem sábio, que foi retirado sob a mira de lanças. O vizir então trouxe o último feiticeiro, chamado Cálavo d’Orvalho. Ele tinha a boca murcha, torta para baixo, e um olho miúdo que parecia não enxergar muito bem. Vestia uma roupa preta opulenta, de camurça e veludo, que indicava que, embora vissem sua imagem, ele não estava ali presente de verdade. Devia viver em um reino frio e distante, e enviara apenas seu espectro, transmitido por algum feitiço à distância.

Cálavo olhou com altivez para o monarca e explicou que o fenômeno solar atípico era uma invenção dos inimigos do reino, que haviam feito uso de uma magia conhecida como falsos sortilégios. Somente quando o rei aniquilasse seus opositores é que o sol voltaria a se esconder nos anéis de ametista. Em seguida, ele propôs que, até que os inimigos fossem exterminados, o rei distribuísse peneiras de palha quando o povo reclamasse do calor.

— E não me oferecerá nenhum feitiço? — perguntou o rei.

O feiticeiro sorriu, presunçoso, e pediu que seus serviçais trouxessem seu presente. Eles adentraram o salão com uma enorme urna feita de carvalho. Cálavo explicou que, muito mais valiosa que um feitiço, ele trazia a mitológica caixa de Asinus. Segundo ele, era tudo de que o monarca precisava. A partir do momento que fosse aberta, a caixa disseminaria a inépcia pelo reino, e o povo iria aplaudi-lo e apoiá-lo sem objetar. O rei não entendeu do que aquilo se tratava, mas ficou entusiasmado com a ideia.

— Mas todos serão abençoados com a inépcia? — perguntou ele.

— Só aqueles que não a têm — sorriu o feiticeiro.

Satisfeitíssimo, o rei mandou instalar a caixa ao lado do trono, e também que a abrissem imediatamente. Mandou equipar o exército com as melhores armas e ordenou que os soldados caçassem seus inimigos. Aos demais… deu peneiras para taparem o sol.

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Janela do Caipora

Era uma goiabeira seca, retorcida e cinzenta. O capim ao redor estava crescido e esturricado pelos meses sem chuva. Os olhos astutos do rapaz se concentravam nas penas coloridas do pequeno canário solitário, que cantava lindamente, empoleirado no galho mais alto da árvore ressequida no topo do monte. Suado, com uma mochila cheia de biscoitos, uma garrafa de alumínio amassada e galochas grandes para os seus pés, o menino estava agachado no mato, observando. 

Silenciosamente, soltou uma alça da mochila e tateou algo amarrado na lateral da bolsa. Era uma arapuca formosa, dessas que vendem na cidade, lixada e envernizada, feita de bambu e eucalipto, para não falar do elástico afiado que abaixava o alçapão assim que um pássaro se aventurasse a pousar no poleiro. Quando desfez o laço, o rapaz se descuidou e a gaiola despencou do alto, fazendo um estardalhaço ao cair no chão. O canário voou e o vento assoprou o capim como quem acorda assustado de um cochilo após o almoço. 

O rapaz teve um calafrio ao notar algo por perto. “Um bicho escondido no mato?”, pensou. Jurou vê-lo se movendo adiante, vindo espia-lo. Novamente, ouviu um barulho — parecia grande. Assustado, o rapaz correu morro abaixo sem notar que a mochila havia caído. Precisava fugir, mas não se preocupou com o caminho e seus olhos se cegaram diante do capim de mais de dois metros, embora o medo fosse seu maior obstáculo. Sentiu um arrepio quando percebeu que o bicho se aproximava, ganindo desafinado. “É uma onça”, pensou, “ou o diabo”.

Ele não soube se rolou pelo pasto ou se o mundo que deu uma volta sobre ele, mas finalmente alcançou a várzea silenciosa e deixou o capinzal para trás. Os bois que pastavam lhe olharam com curiosidade ou desdém, ruminando. Ofegante, teve um novo sobressalto quando alguém o tocou no ombro. Deu um grito agudo e covarde que lembrou o som de um rádio velho mudando de estação. 

O camponês com a pele morena, arruinada pelo sol, olhou para ele com desconfiança, tirou o chapéu de palha para enxugar o suor e a sua cabeleireira cheia brilhou como fogo. “Era só um porco-do-mato”, falou o homem, indicando o capinzal com o queixo e o rapaz respirou aliviado. Apoiando-se em uma vara comprida, o homem convidou o rapaz a segui-lo.

Foram até um casebre, numa grota perto do rio. Com fome, o menino se lembrou do pacote colorido de biscoito que havia deixado na mochila, agora perdida no mato. O homem deu-lhe uma caneca d’água e acenou para que se sentasse. O rapaz obedeceu e matava a sede com um gole comprido, quando foi interrompido por um latido no quintal. Alguns cachorros descansavam por perto e, ao lado deles, estava a arapuca formosa, escangalhada. “Algum cão a trouxe para cá”, pensou o ingênuo rapaz. Ele foi ao quintal e pegou a pequena gaiola com entusiasmo. Avistou a goiabeira solitária no alto da montanha e mordeu os lábios, cobiçoso.  

“O que tem lá?” o camponês perguntou e o menino descreveu com afobação o pássaro que queria pegar. Pretendia exibi-lo na janela do seu apartamento e todos na cidade ouviriam o seu lindo canto. O homem apenas balançou a cabeça, intrigado. “Se ainda tiver medo, levo você lá”, ofereceu, despretensioso. 

Acanhado, o menino sentou-se no banco e bebeu mais água. Recostou na parede fresca e ouviu o som do riacho, experimentando a sensação prazerosa de alívio por ter se salvado do porco-do-mato. Descuidado, sua cabeça pendeu para o lado e ele adormeceu.

Despertou no escuro, sentindo o mundo balançar, e ergueu a fuça para ver a luz do dia. Seus pequenos olhos notaram que estava enjaulado e, além das grades de bambu que o cercavam, o mundo parecia ter crescido. O mais estranho, contudo, era testemunhar a sua alma espremendo-se num corpo diminuto, desconfortável, enquanto se equilibrava no poleiro da gaiola. Desorientado, tentou gritar, mas foi um silvo longo e delicado que emitiu da garganta. Olhou para o horizonte através das grades, viu a goiabeira seca e lembrou-se dela. Ele a desejava. Não se recordava por que, mas seu coração exultava por se aproximar dela.

Os galhos da árvore sem vida se estendiam para ele como braços que, em uma faísca de memória, achou que tivera um dia. Sua alma havia se acomodado, afinal. Deixado a poucos metros do tronco seco, ouviu o rangido do alçapão que o separava do céu azul se abrindo. Instintivamente, eriçou as asas, voou até a goiabeira e pousou no galho mais alto, exultante. O mundo ali de cima era soberbo e ele quis gritar para todos ouvirem como era belo o que via. De sua garganta nasceu o canto mais lindo, que fez o vento despertar, atrasado, fazendo o capim se curvar de melancolia.

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Pacto com Sereias

Um magistrado prepotente navega em busca de fortuna, indiferente ao aviso dos velhos amigos marinheiros: naquelas águas há sereias que farejam a ganância. Quando a lua revelar o mistério sob as águas, deflagrará também a verdade no convés do Correnteza, numa viagem audaciosa de uma mulher em busca de um sonho idealista.