Essa ficção relâmpago foi publicada na terceira temporada da Faísca, uma newsletter semanal que traz contos curtinhos de fantasia e ficção científica para a sua caixa de e-mails. Não conhece? Assina logo! É de graça! O link é eepurl.com/ghH89v
A foice decepou o último caule e José preparou o feixe de cana para pôr no próprio lombo. As folhas fibrosas arranharam suas costas, mas ao menos fizeram sombra na cabeça suada sob o sol impiedoso. Caminhava ouvindo o som do mato arrastando na terra até ouvir alguém sussurrar ao seu lado.
— Ei, Zé. Já ouviu falar na cabocla do lago?
Ele encarou o amigo com um olhar de descrença, a pele vertendo suor, mas o homem continuou a falar.
— Tão falando que tem uma moça morando debaixo d’água. Quem passa lá em noite de lua cheia ela chama.
— Aquele açude tá cheio de peixe e sinhô não gosta que ninguém chegue perto — retrucou José.
— Eu que não vou chegar perto mesmo! Vai que a danada me puxa pra dentro d’água e me afoga.
— Essas histórias de sereia… é tudo lenda, Manoel.
— Que sereia que nada! Dizem que é uma feiticeira ou um fantasma.
• • •
José terminou o dia dando banho nos cavalos e se lavou depois com a água que sobrou no tanque. Pegou um farnel que havia deixado escondido no caibro do estábulo e se perfumou com óleo. Vestiu uma roupa limpa e saiu pela estrada. Era noite de lua cheia e tinha roda de capoeira em um terreiro ali perto.
Já estava escuro quando passou no açude da fazenda. Lembrou-se do que Manoel havia lhe dito ao reparar no reflexo da lua no espelho da água. Subitamente, algo se moveu e José sentiu um calafrio. O açude enrugou-se como um maracujá e ele ouviu algo emergir. Parou assustado e deu uns dois passos para trás.
— José — ele ouviu uma voz feminina chamando.
Ele quis correr, mas suas pernas estavam paralisadas. A silhueta do torso de uma jovem de cabelos compridos o encarava de dentro da água, com o luar refletido nos olhos.
— Como essa diaba sabe meu nome? – murmurou sozinho.
Ele espreitava de longe, tentando se convencer que aquilo era só um delírio.
— Não tenha medo – ela continuou. – Há algo que preciso lhe entregar.
Com as pernas trêmulas, José se aproximou, ressabiado. Os olhos brilhantes da moça o atraíam de um jeito inexplicável, que o impedia de fugir correndo. Seu coração batia acelerado e seu corpo se movia involuntariamente. Intrigado e cheio de medo, contornou o tronco grosso de um ipê, ainda florido, na beira do açude e se agachou na margem.
A jovem cabocla riu e mergulhou de repente, deixando as águas calmas mais uma vez. Pareceu nadar até o fundo e José olhou para os lados, sem entender o que estava acontecendo. Só depois de alguns instantes que notou o cabo de um facão, emergindo da água barrenta. Aos poucos, a arma foi erguida por completo, como se flutuasse sobre as águas, amparada pela mão delicada da cabocla do açude. Lâmina comprida, afiada e reluzente.
Mesmo submersa, a voz da moça foi clara:
— Que esse facão rompa amarras e una o seu povo!
Com os olhos vidrados, José se aproximou, pegou a arma com cuidado e a levantou no alto, sentindo-se cheio de vigor. Em um vislumbre, imaginou-se livre ao lado dos que amava. Então ouviu um tiro.
— Escravo maldito, querendo roubar peixe do sinhô!
Seu peito ardia como brasa e faltou ar em seus pulmões. José caiu no mato e sentiu o sangue escorrendo pelas costas. A cabocla do lago havia desaparecido e os homens chegavam perto, pelo som que suas botas faziam no capim.
— Se ele morrer, sinhô vai reclamar — ouviu uma segunda voz dizer.
Enfraquecido, José ergueu o corpo e fincou o facão no tronco do ipê. Rogou aos deuses uma prece para que só quem fosse digno pudesse reaver aquela arma. Prestes a perder a consciência, ainda conseguiu escutar:
— Vaso ruim não quebra. Ele ainda vai pagar por ter enfiado essa merda de faca na árvore favorita da sinhá.