Essa ficção relâmpago foi publicada no episódio dois da sexta temporada da Faísca, uma newsletter semanal que traz contos curtinhos de fantasia e ficção científica para a sua caixa de e-mails. Não conhece? Assina logo! É de graça! O link é eepurl.com/ghH89v
Acordar de cabeça para baixo amarrado no caibro do estábulo não foi a melhor experiência que já tive. Não foi a pior também. O desgramado deve ter me pegado ontem quando saí do boteco. Confesso que eu estava um pouco tonto e não vi o que me acertou. Sorte a dele, ou teria experimentado minha famosa chinelada. Alguns super-heróis têm um martelo, outros um escudo. Minha arma secreta é o meu chinelo de dedo.
Sempre gostei de quadrinhos de super-heróis. Quando eu era mais novo, todo mês eu e meu melhor amigo juntávamos nossas moedinhas pra comprar uma edição nova na banca de jornal. Quando ganhei meus superpoderes, meu amigo queria me chamar de Super-Chinelo, mas preferi X-nelo. Sempre gostei mais dos X-Men do que do Super-Homem.
Olhei pro alto, pensando num jeito de escapar. Forcei os punhos, mas a corda era forte, e o nó bem firme. Enquanto eu me sacudia feito uma minhoca puladeira, o miserável apareceu pra me interrogar. Era um rapazote esnobe, fortinho de academia, com a barbicha desenhada. Vestia uma calça jeans apertadinha, uma camisa florida com três botões abertos e um chapéu de palha novinho.
— Patrão quer saber onde conseguiu seus superpoderes — ele falou.
Pensei num desaforo daqueles bem indecentes envolvendo a mãe do dito cujo. Mas não é bom brincar com mãe, e eu sabia bem disso. Minha querida mãezinha não gostava de violência, mas teve uma vez que ela abriu uma exceção. Eu já era bem crescido na época. Era um almoço em família. Perturbei tanto a velha que ela tirou o chinelo do pé e zuniu na minha cabeça. Quando me recuperei do desmaio, descobri que tinha superpoderes.
— Eu mostro procê onde foi se me soltar daqui, filho d’uma égua — falei.
Se o nó não estivesse tão apertado e a corda não fosse tão grossa, já teria me libertado, e aquele infeliz já estaria voando pra mais de cinquenta metros pelo pasto depois de uma única chinelada.
— Dizem que você é capaz de pôr fogo nas coisas — ele disse, chegando mais perto de mim. — Tão falando que anda incendiando o pasto aqui da região.
Como se eu não tivesse mais o que fazer. Era verdade que eu não controlava aquele poder muito bem, mas eu não seria capaz de causar um estrago ambiental. Passei anos sem entender por que eu havia ganhado a pirocinese — o mesmo poder do homem tocha — depois do incidente com minha mãe. A origem da minha super chinelada era óbvia, mas por que o fogo? Só depois me lembrei da linguiça apimentada que haviam servido no almoço daquele dia fatídico. Era tanta pimenta que algum elemento X da malagueta deve ter escapado do prato e caído no meu olho. Lembro que ardeu igual brasa.
— Diacho, e agora precisa de superpoder pra por fogo em pasto? — respondi com deboche. Afinal, aquela pergunta era um desaforo. Estavam querendo me incriminar.
— Vai saber do que você é capaz depois de algumas cachaças. — Ele deu um sorrisinho. — Você tá sempre no botequim.
E eu lá sou doido de misturar fogo e pinga?! De fato, eu andava bebendo muito ultimamente. Não tinha nenhum supervilão ali na roça pra dar razão pra minha existência. Quem sabe se tivesse um laticínio investindo em experimentos com substâncias radioativas, já teria surgido o Minotauro ou quem sabe o Abutre. Um herói sem um arqui-inimigo é igual cachaça sem torresmo!
— Olha — eu disse, já perdendo a paciência —, fala pro seu patrão procurar outro bode expiatório.
— Ele quer saber quem tá te pagando.
Era só o que me faltava. Meu salário de batedor de pasto mal dava pra pagar a conta da mercearia & bar no fim do mês.
— Rapaz, se eu tivesse ganhando dinheiro assim, você acha que eu rodaria por aí de camiseta furada e chinelo de dedo?
Pronto. Minha paciência havia se esgotado. Estalei os dedos e uma labareda subiu pelas cordas que me amarravam. Caí no chão igual estrume, mas me levantei bem rápido. Mesmo sem ter supervelocidade, eu ainda tinha minha dignidade. O rapazola parecia que havia visto a mulher de branco na estrada de tão assustado. Meio trêmulo, sacou uma pistola, apontou pra mim e, sem pensar duas vezes, puxou o gatilho.
O barulho do tiro fez as galinhas se agitarem do lado de fora. O rapaz ficou ainda mais assustado ao me ver de pé depois de tomar um tiro na barriga a poucos metros de distância. Eu peguei a bala amassada e espanei minha camiseta — agora com um furo novo. Pouca gente conhecia meu terceiro superpoder. Naquele almoço de família, quando levei a chinelada, a sobremesa foi rapadura.
Caminhei lentamente até o rapazola e surrupiei o chapéu dele pra mim. Ele não reagiu. Só então resolvi responder a primeira pergunta.
— Meus poderes vieram de um chinelo velho de um pé cansado, de uma pimenta que não era refresco e de uma rapadura doce, mas que não era mole não.